Elogios que destroem: uma grande arma dos diálogos
Ou: pare de ler esse blog e vá já ver Sonata de Outono
Às vezes quando vou começar um tópico sobre escrita de diálogos, sinto que vou chover no molhado. Mas a julgar por alguns trabalhos que vejo por aí, os roteiristas não lembram dessas obviedades. Hoje vou falar uma: dá muito bem pra ofender alguém só com elogios.
O bom diálogo é feito de sutilezas e contrastes, sutilezas e contrastes. Um personagem não precisa chamar o outro sempre de bobo, feio e chato pra ofendê-lo.
O Golpista do Ano, de 2011, não tem nada memorável salvo (para nós brasileiros) ter o Rodrigo Santoro contracenando com Jim Carrey e Ewan McGregor. Mas uma cena besta sempre ficou na minha mente. Infelizmente não a achei no Youtube pra colar aqui. Vou tentar descrevê-la de cabeça.
De manhã, um homem chega de carro à firma, e então vê um puta carrão chegando ao mesmo estacionamento. O homem fica olhando admirado e vê sair de dentro do carrão seu colega de trabalho, interpretado pelo Jim Carrey. Corta para os dois subindo o elevador juntos. Se cumprimentam, Jim Carrey com um ar exibido de quem nunca teve grana e agora tem muita. O homem elogia o carro; Jim, orgulhoso, responde que acaba de comprar, não lembro a fala mas a ação era “se mostrar”. Pausa, Jim Carrey pergunta qual carro o colega está dirigindo, o homem diz o nome, é algo bem simples. Outra pausa, e então Jim Carrey manda o elogio:
- Tem ótimo rendimento!
… E então sai do elevador deixando o homem lá sozinho.
Foi um elogio? Foi. Mas para o Homem, e para nós espectadores, foi claramente uma cutucada.
Passemos agora para uma das cenas de Bergman que mais me rasgam por dentro. É do filme Sonata de Outono, um retrato incrivel e terrível de relações mãe-e-filha.
(Por favor clique no link pra assistir, esse vídeo não está autorizado a ser exibido fora do Youtube: Sonata de Outono - Cena do Piano )
Aos 2´19”, depois da Filha tocar a peça do Chopin, temos as falas:
MÃE: Eva, minha querida.
FILHA: É só isso?
MÃE: É que eu me emocionei tanto.
FILHA: Você gostou?
MÃE: Eu gostei de você.
Uma filha que só quer validação da mãe. Uma mãe que não sabe como dar o que a filha precisa. Enquanto no exemplo do Jim Carrey, o elogio tinha aquela intenção de alfinetar, aqui não. A mãe interpretada por Ingrid Bergman tentou se furtar de criticar a filha. Eu gostei de você. A intenção foi boa. Mães também vão para o inferno.
EXERCÍCIO:
…
Você ainda tá lendo? Então para e vai já ver Sonata de Outono, porra! Ele é uma aula melhor do que a que eu poderia dar em mil anos. Só se atente a como as relações do filme são cheias de elogios que destroem, intencionalmente ou não.
E depois pegue qualquer episódio - qualquer um! - de Downton Abbey. Note como a nobreza, especialmente a personagem de Maggie Smith, metralha usando elogios. É uma das características da ironia inglesa. Mais pra frente voltaremos a falar sobre humor inglês, algo que merece um capítulo especial.